Então você acorda e percebe que não está na sua casa. Aliás, está naquela que sempre foi a sua casa, mas não é mais. É como se estivessem rebobinando a sua história e te jogassem lá dentro, mas com um roteiro novo. Você não é mais o mesmo. Você não tem mais quinze anos. Você se lembra do cenário, mas a narrativa é outra. Nos últimos anos você se habituou a desenhar a sua própria história todos os dias. Você se desacostumou a ouvir verbos no imperativo, afinal, você aprendeu a se tornar a sua própria escritora. Antes eu tinha uma máquina, agora o computador. A tinta acabou, não posso escrever na máquina nem imprimir os textos que digitei. Se a luz apagar eu perco tudo. O meu tudo criado, digitado e ilusório. Eu não sei mentir, como escreverei histórias? Um bom escritor precisa ser um bom mentiroso. Precisa saber desfazer, recontar, reinventar. Pelo menos foi isso que o Sabino disse na entrevista do Roda Viva. Ele mentia para sua mãe desde a infância, ele era bom nisso. Resultado: se tornou um exímio escritor. E eu? Eu que só vivo a verdade, que mal conto mentiras sinceras, eu que estou à beira do abismo e tenho medo de pular? Eu que estou aqui e espero alguém chegar para fazer o trabalho por mim? Me empurrem! – Eu grito. Mas não tem ninguém. Apenas um protótipo de mim mesma. Eu mesma... Aquele eu buscando o instante já de “Água Viva”. O eu que quer ser ousado feito todos os personagens que já li. Pensando bem, deceparam minha veia inventiva ao dizerem que eu não podia mentir, que era feio, que o nariz crescia. Por que fizeram isso comigo? Por que não me deixaram subir nos palcos? Por que disseram que eu precisava de um ofício que pagava as contas. Por que me tiraram de mim? Por que me fizeram uma miniatura deles? Agora eu me vejo aqui em puro sofrimento para me permitir escrever em uma tarde de terça-feira que eu deveria estar fazendo todas aquelas outras coisas que me afastam do verdadeiro eu.
Torcicolo. Ela disse que estava com dor nos ombros e a dor passou para mim. Eu sempre falo para ela não cultivar essas falas negativas e duras sobre ela, o seu corpo e a sua vida. Bem que eu podia ser escritora. Abrir um documento e digitar às vezes alivia, mas às vezes faz doer os ombros. Sim, eu sei que não é pela escrita e sim pela tensão. Não ser presença me apavora. Não estar de corpo inteiro me atordoa. Quero mergulhar, quero verdadeiramente estar de corpo inteiro. Essa semana dei uma aula e expliquei a diferença da linguagem prolixa e da concisa. Booom! (Será que essa onomatopeia caiu bem?) Tornei quem eu mais temia: um ser prolixo abominável. Dou voltas, rodeio e não conto o que vim pra dizer. Será que é porque ainda machuca? Será que é porque eu ainda não aceitei entender essa avalanche que jogaram na minha estrada? Não, hoje eu não vou fazer toda as tarefas da minha lista de pendência. Só por hoje eu quero me permitir imergir. Ir lá no fundo. No final, eu assino com um pseudônimo e fica tudo bem. Ninguém saberá quem sou, quem é ela, quem é ele, ou quem deixamos de ser. Eu precisei deixar de ser tanta coisa... Até eu mesma. Eu me anulei durante esse mês de furacão. Eu só vivia pra ela e por ela. Eu chorava escondido. Eu conversava com Deus. Eu precisei dos meus. Eu tive medo. Eu tive que agir. Precisei me mudar. Mu-dar. De casa, por dentro e por fora. Eu precisei voltar. Largar meu templo, meu refúgio, minhas coisas, minha rotina... Eu me larguei. Pra quê eu estou escrevendo isso? Pra quem? Pra mim... Para o meu eu de daqui dez anos.